A GENTE SE ACOSTUMA
Por Jaime Folle
Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia. A gente se acostuma a acordar, de manhã, sobressaltado porque está na hora do trabalho. A tomar café correndo porque está atrasado. A olhar o celular quinze horas por dia porque não pode perder a última mensagem. A comer sanduíche porque não dá tempo para almoçar. A sair do trabalho correndo porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir sem ter vivido o dia e muito menos ter curtido sua família e lembrado que Deus existe.
A gente se acostuma a aceitar a violência da guerra, aceita os mortos e ainda joga na estatística de suas conversas.
A gente se acostuma a pagar por tudo que deseja e por tudo o que necessita. A lutar por ganhar mais e mais dinheiro para não cair de classe social. Se acostuma em filas enormes do engarrafamento do trânsito a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem.
A gente se acostuma com a poluição. Com a luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável, à contaminação da água do mar, à lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ouvir o cantar dos galos na madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher frutas no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a desculpar-se por coisas demais para sofrer em pequenas doses, e assim vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se a praia está contaminada, a gente molha só o pé e sua o resto do corpo no sol, mas não deixa de ir. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando na sexta feira. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque seu time empatou fora de casa.
A gente se acostuma a ralar na aspereza, para manter um belo corpo e preservar a pele. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta e que, de tanto se acostumar, se perde de si mesma.
Enquanto termino de escrever esta coluna já estou acostumado que na próxima semana tem que escrever outra.
Até a próxima!
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